sábado, 23 de outubro de 2010

Memórias de um Tricolor

Taguatinga (queria muito voltar a ser o Peter Pan) - Domingo, dia 25 de junho de 1995. Como acontecia quase sempre, estava passando o fim de semana na casa da vovó. A "casa da vovó", apesar da denominação, era um apartamento. Três quartos e um banheiro, que nestes dias ficava um tanto congestionado, já que casa em que moravam regularmente a Vovó, tio Mário, tio Pedro, tio Ique e Assis, ainda ganhava o Daniel e eu como moradores de fim de semana. Uma visita desavisada em um amanhecer de domingo poderia ser confusa para que o fizesse. Como não havia espaço suficiente nos quartos, dormiam na sala: tio Ique, Daniel e eu (e algumas vezes o João Pedro). A sala ficava completamente tomada por colchões e cobertores. A vovó era a primeira a acordar e muitas vezes fazia um certo malabarismo, esgueirando-se entre os colchões para ir à padaria sem nos acordar. Se o Daniel ou eu estivéssemos acordados, esta tarefa seria automaticamente nossa. O tio Mário era quem acordava na sequência, sempre animado e, quase sempre, com alguma programação já acertada para o dia. O Assis acabava vindo por tabela. Com três pessoas da casa já acordadas, os que dormiam na sala não podiam fazê-lo por muito mais tempo, já que atrapalhavam o trânsito pelo apartamento. O último quarto a "acordar" era o do tio Pedro, nada mais justo, já que normalmente ele era o último a dormir, também.

Aquele dia era especial. Daniel e eu sempre fomos "quase irmãos". Todos os primos: Rafael, Érico, Igor e Philipe, além de nós, éramos quase irmãos. Mas talvez por não termos irmãos (o Daniel tinha duas irmãs), o Daniel e eu éramos muito próximos. Tomamos nosso café da manhã e nos preparamos para o dia. Naquele dia, a adrenalina era muito grande para irmos ao campo de areia, do outro lado do Cruzeiro (bairro em que estávamos) para jogar bola pela manhã inteira. Queríamos estar inteiros para o grande momento. Então, ao invés de vestirmos as roupas de jogar futebol e descer para chamar os outros primos, ficamos por lá mesmo e aos poucos fomos ganhando novas companhias.  Aos poucos foram chegando, o Rafael, o Karlos e a Karla, Danielle e Danilla, tio Vanderlei, tio Valter, tio Evan, Érico, Igor e etc. Tudo bem que os domingos na casa da vovó eram sempre assim, mas em dia de final de campeonato o clima é outro. Salvo engano, o Daniel, o Rafael e eu vestíamos camisetas parecidas: uma camiseta que fazia alusão aos quatro clubes cariocas da frente "Torço por todos" e atrás revelava o verdadeiro clube: "P... nenhuma, sou FLUZÃO", isto no meu caso e no do Rafael. O Daniel era molambada flamenguista. Ainda é (não me perguntem por que). A pouca diferença de idade entre nós, nos unia naturalmente. O Rafael e o Daniel dividiram sala de aula, primeiras paixões e até algumas namoradas (neste caso, não ao mesmo tempo).

Para matar o tempo e aliviar a expectativa, gravamos algumas fitas. Uma delas foi "Rap Brasil vol. 1". Na época era moda.  Este disco tinha alguns hits como: "Rap do Silva, "Dança da Bundinha", "Dança da Cabeça", "Rap do Endereço dos Bailes" e aquele rap extremamente chato que fazia alusão ao ano do centenário do flavela flamengo. Na torcida burro negra rubro negra o Daniel ganhou o reforço do Kalinhos. Ainda assim não faziam (e não fazem) frente ao Esquadrão Tricolor: tio Valter, tio Pedro, tio Raimundo, Érico, Igor, tia Regina, Rafael e eu. Mais tarde, outros torcedores do lado negro da força também integraram-se aos dois: tio Ique e Philipe. Para todo este grupo o dia era especialmente tenso e a tensão aumentava à medida que a hora do jogo aproximava-se. Os únicos elementos relaxados em nosso ambiente eram os vascaínos: tio Mário, tio Evan e minha mãe, além do Assis, que é botafogo. Alguns destes, aproveitando-se de seu relaxamento aproveitavam para fazer pequenas piadas e deixar nosso clima ainda mais tenso.

O ano de 1995 foi o ano do centenário do flamengo. Um investimento vultuoso aportou na gávea, de modo que o principal jogador da última copa, eleito o melhor jogador do mundo estava lá: Romário. Além deste, o novo Zico (acho que já vi pelo menos uns cinco "novos zicos"), o frágil Sávio era outra estrela do time. A maioria dos torcedores rubro negros que eu conhecia já dava o ano como "favas contadas": campeão carioca e brasileiro. Era o que acreditavam. E a campanha do flavela flamengo no campeonato carioca não desmentiu esta espectativa: ganharam a Taça Guanabara e nadaram de braçada na fase final. Já o Flu... Ah, o Flu... Nenhuma contratação de enorme impacto. O maior nome trazido pelo clube era o do decadente Renato Gaúcho. Mas o time era, digamos, certinho. Algumas pratas da casa, como Sorley e Cadu. Alguns jogadores que já estavam no clube havia algum tempo, como Leonardo, Rogerinho, Lira e o "Super" Ézio. Um ótimo meio campo repatriado: Djair; e um punhado de ilustres desconhecidos: Welerson, Márcio Costa, Aílton e etc. O ano estava difícil para nós. Mas na fase final, encaixamos uma sequencia de vitórias e estávamos na final.

O clima entre os Tricolores na casa da vovó era de desconfiança. Jogamos (e perdemos) as finais de 91, 93 e 94, sendo que em 91 e 94 tínhamos um time superior. Desta vez, com um time ajustado, porém com menos glamour, estávamos com um pé atrás. E nem tinha como ser diferente. Nas rodas rubro negras, o ar de já ganhou imperava. Tenso. O clima era tenso. O flamengo ainda jogaria pelo empate! Ai, ai, ai. Mas enfim, vamos lá. Aproximando-se da hora do jogo, troquei minha camiseta por uma oficial, da Penalty, com patrocínio da Coca-Cola que fora usada pelo time em 1993. A blusa que usava, emprestei para a Karla e ganhamos mais uma torcedora. Como costumo dizer, eu vivia futebol naquela época. Com quinze anos de idade, eu não tinha muita coisa para fazer além de estudar, jogar bola e jogar video game. Então, vou dar a escalação do Flu para o jogo: Wellerson, Ronald, Lima, Sorley e Lira; Márcio Costa, Aílton, Djair e Rogerinho; Renato Gaúcho e Leonardo. Timaço!! 

Eu nunca havia visto o Fluminense ser campeão. Minha maior alegria no Futebol havia sido a conquista da Copa do Mundo pela Seleção brasileira no ano anterior. A cada final que acompanhava, minha expectativa crescia. Consequentemente, a tensão pré jogo, também. Instantes antes da bola rolar, a sala da vovó parecia uma lata de sardinha (do jeito que ela gosta). Gente nos sofás, em pé, sentados no chão, em cadeiras ou pindurados em outra pessoa. Era muita gente. E como estávamos em família, não tinha essa de separar os Tricolores dos rubro negros. Era todo mundo junto mesmo. Quando a bola rolou, a tensão, curiosamente saiu de cena (pelo menos para mim) e deu lugar à hipnose. Fiquei com os olhos vidrados na televisão durante os 90 minutos. Toda nossa desconfiança e pé atrás, existentes horas atrás passaram para o lado de lá quando o Flu abriu 2x0 ainda no primeiro tempo. Lembro perfeitamente da sensação de alívio e de "dever cumprido" que senti durante o intervalo, quando fui à cozinha pegar uma Coca-Cola. Mas o que parecia ser uma final muito mais fácil do que a dos anos anteriores, virou um verdadeiro pesadelo quando o flamengo empatou o jogo e justamente com Romário marcando o segundo gol. Romário nunca havia marcado contra o Flu até aquele momento. Mas o Flu contava com Renato Gaúcho, um dos caras mais raçudos que já vi dentro de um campo de futebol. Ele havia feito gol em simplesmente todos os fla-flus do ano (outros três) e mesmo naquele jogo já havia deixado o seu. Mas quando a Aílton fez uma belíssima jogada pela direita e chutou para o desvio de Renato Gaúcho (com a barriga), Renato marcaria o gol que seria lembrado por toda a sua vida em qualquer profissão que arriscasse após pendurar as chuteiras. O gol que Renato acabara de marcar ficou mais famoso, até do que o gol fizera pelo mundial de clubes, dando o caneco ao Grêmio. Ou que o punhado de gols que marcou com a camisa da Seleção. E foi um gol com a cara de Renato, com raça e oportunismo. Gol de quem não desiste. Nesta hora, aos 43 minutos do segundo tempo, o tempo parou para mim. Por alguns instantes, não ouvi, não enxerguei, não senti cheiros. Meus sentidos pararam. A única sensação que tive, foi a mais espetacular que já experimentei na vida. Lembro de ter abraçado todos os Tricolores, de ter gritado e pulado. Mas sinceramente, não lembro dos minutos que completaram o restante do jogo. Para mim, o jogo acabou ali. E de fato, foi o que ocorreu.

A festa que tomou conta do Cruzeiro foi grande. O Cruzeiro é um bairro que conta com muitas pessoas originárias do Rio, por isso, nossa torcida lá é enorme. Tomamos as ruas batucando, cantando, gritando e festejando. Um verdadeiro carnaval. E o Daniel estava conosco, afinal era quase que nosso irmão. Para mim, aquela comemoração extenderia-se por exatos cinco dias. A cada lugar em que eu chegava com minha camisa do Flu, era calorosamente cumprimentado e até festejado. Todas as pessoas que gostam de futebol sabiam que aquela final ficaria para a história como uma das mais dramáticas, espetaculares, emocionantes. Ganhei, também, algumas caras fechadas, já que da mesma forma que foi especialmente delicioso para os Tricolores, foi especialmente doloroso para os molambos flamenguistas. Mas também não perdi nenhuma amizade. Foram apenas algumas reações completamente normais.

Hoje em dia, não acompanho futebol como acompanhava em minha adolescência (até a crise que levou o Flu à terceira divisão). Mas quando alguém me pergunta por que eu gosto de futebol ou porque sou Tricolor, aquela sensação me vem à memória. Nunca conseguirei traduzir esta sensação em palavras, e, para ser sincero, nem tento. Aquilo foi para sentir e não para contar.

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